sábado, 27 de fevereiro de 2010

O Jardim das Mudas Perambulantes

Já passa das 11 horas da manhã quando elas começam a aparecer. Saem todas por uma mesma porta. Sai uma, depois de alguns minutos outra, logo outra e assim seguem, numa frequência e ritmo que podem variar a cada dia. Mulheres. Creio que cerca de 25, ainda que nunca vêm ao jardim todas de uma vez. As idades são variadas... Imagino que dos 25 aos 60 anos. No inverno aparecem sempre bem agasalhadas, muitas encapuzadas e, por vezes, quase não posso ver os seus rostos.

Elas saem por aquela porta, sempre a mesma, e é pra lá que voltam terminado o passeio. O que chama a atenção nesse grupo de mulheres peculiares que visitam o jardim é que elas não falam. Ou melhor... Não se comunicam umas com as outras de maneira alguma. Não se olham, não gesticulam, não se tocam. Agem como se estivessem sozinhas. Sempre.

Essas mulheres são controladas por um gongo, que não consigo ver onde fica. Certamente estará além daquela porta. Aparecem e se vão quando ele soa. Uma vez pela manhã e outra ao fim da tarde. O curioso é que, muito embora não falem, não interajam e sejam controladas por algo que escapa meu entendimento, essas figuras não parecem tristes, amarguradas ou obrigadas a estarem ali. Na verdade, elas não demonstram nada. As faces sempre levam a mesma expressão de máscara neutra. Apenas no ritmo do caminhar comunicam alguma coisa: algumas caminham mais aceleradamente, como que fazendo exercício; outras simplesmente perambulam.

A extremidade direita do jardim é limitada por uma corda verde, para além da qual elas estão proibidas de ultrapassar. A corda as separa do contato com os homens, mas de onde observo não consigo vê-los. O que me supreende é que nos limites imediatos da corda não se vê ninguém, nem de um lado, nem do outro. Não sei se por medo ou respeito, as mudas não chegam nem olham para além da corda verde.

No jardim existe um circuito, aberto na grama já pisada por outras como elas. E é por este circuito que elas seguem... numa espécie de rito respeituoso às que ali estiveram no passado. A maior parte segue o circuito em sentido anti-horário. Vez por outra alguma, entediada, inverte o sentido da caminhada. Apesar da aparente sensação de que cada uma vive seu universo particular, cada transgressão que acontece no jardim claramente atinge às outras. Um dia uma delas parou num banco e deitou-se. Minutos depois todos os 4 bancos estavam ocupados com mulheres mudas deitadas. Se uma decide fazer algum exercício de alongamento (coisa, por sinal, que se repete muito), logo se vêem outras, em cantos distantes, repetindo gestos parecidos. Imagino que essas ações transgressoras devam agir nelas como um bocejo. Quando um faz na nossa frente, é inevitável repetir. 

Outro dia uma delas parou para observar o sol que já estava a ponto de se pôr. Perto dela (mas longe o suficiente pra manter os seus cículos pessoais de isolamento) logo se juntaram tantas outras. E ali permaneceream, numa imagem bonita de se ver, todas voltadas pro sol, contemplando o astro rei. Até que soou o gongo. Uma a uma, foram deixando o iminente pôr-do-dol para trás e, sem parecer lamentar a saída prematura, voltavam praquela porta de onde haviam saído minutos antes. Sempre a mesma porta. 

No dia seguinte a mesma dinâmica se repete. E assim por diante, num período de 10 dias. Os dias de sol decretam presença massiva das mudas no jardim. Nos dias de chuva a freqüência é menor, mas, ainda assim, podem ser vistas. Para algumas o passeio parece ser uma atividade de primeira necessidade: ir ao jardim é uma obrigação, nem que seja pra dar duas voltinhas no circuito e logo retornar praquela mesma porta. 

Reconheço que é o fim do ciclo no dia em que começo a ouvir vozes para além da porta. Muitas vozes. Falam todas ao mesmo tempo, ansiosas, incessantes. Dão a impressão de liberar palavras acumuladas por um longo período de silêncio compulsório. Neste dia as mudas se vão. Nenhuma delas retorna ao jardim, ainda que esteja brilhando um lindo sol e o céu esteja sem uma nuvenzinha sequer. Não sei se são elas as que falam, ou se são essas vozes que as espantam. O fato é que, no dia em que escuto as vozes é sinal de que não as verei mais. Até o próximo ciclo, quando novas mulheres assumirão o papel destas.

O Jardim das Mudas Perambulantes é efêmero e cíclico. Dura um período determinado, mas sempre se repete. Embora a porta misteriosa que o guarda siga aparentemente sendo a mesma, uma repetição é sempre completamente diferente da anterior. Por anos acompanho e me delicio com este jardim. Impermanente. Mutante. Com ele aprendo que este eu que observa também se renova junto com os ciclos das mudas que vêm e que vão. 

Anicca! Anicca!

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

1 ano

Hoje se completa um ano da minha chegada em Barcelona. Ui! 

Há um ano, a esta hora, estava morrendo de frio na casa de Edu e João, me preparando pra dormir com um nórdico pela primeira vez (e não é desse tipo aí que você tá pensando, hein? É um edredom!), ainda confusa com o Jet lag e sem saber direito o que estava sentindo... Apenas sabia que era muita coisa de uma vez só. Na cabeça meia dúzia de idéias e convicções que dentro de pouquíssimo tempo se desmanchariam feito papel n’água, uma a uma.

Pois... Saí de Salvador com planos de agora estar voltando pra casa, como a ex-colega chilena de quem me despedirei no domingo. Sem dúvidas, ver Daniela ir de alguma forma mexe comigo. Me põe frente a frente com as minhas escolhas. Apesar da compreensão e do esforço de estar ao máximo no momento presente não deixo de ouvir, ao longe, aquelas vozeszinhas que ficam o tempo todo dando voltas: “E se... e se... e se...”. Mas tô aprendendo o truque de deixá-las ficarem roucas... Logo silenciam.

Quando um vai estudar fora algumas das frases que mais se escuta são: ”Um ano não é nada”, “Vai passar voando, você vai ver!”, “Quando você menos esperar, tá na hora de voltar...”.

Uma coisa é escutar, racionalizar, entender... a outra é viver. Insano. É esquisito ter registrado na própria pele as contraditórias sensações de ter a impressão de que cheguei há pouco mais de 3 meses e de, ao mesmo tempo, saber ter acumulado tanta experiência nova que não cabe em 1 simples ano... Psicologicamente acho que devo ter vivido uns 3.

Tanto que nem vou ousar começar a fazer um balanço de tudo o que me passou. Me deterei apenas em registrar algumas palavrinhas chave que marcam alguns dos aprendizados apenas começados nesse período:

Flexibilidade * Clareza * Paciência * Verdade * Impermanência * Contemplação * Equanimidade * Fé

E sabe do que mais? Pelo saldo que se esboça, sinto que ainda preciso de mais uns quantos anos psicológicos pra dar conta de outras tantas palavras. Muito trabalho a ser feito. Quanto isso vai levar em tempo cronológico? Não opino. Prefiro deixar ele se defina por si.

A saudade permanece.

Apita o juiz o início do segundo tempo. Que siga o baba.
 

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Neu per tot arreu

Geeeente... esse fim de semana passei por umas cenas dignas de registro.

Tudo começou quando Vívian, meu porto brasileiro em Tarragona, foi convidada a tocar numa festa nos Pirineus e me chamou pra ir de acompanhante. “Festa num albergue láááá nos Pigmeus??” – brinquei – “Nem pensar!! Imagina se vou me meter num lugar que eu não possa voltar pra minha casinha quando encher o saco...”. No dia seguinte ela voltou a tocar no assunto, mas deu informação nova... O lance era passar o fim de semana nesse lugar que era um refúgio nas montanhas, num evento organizado por um grupo, com vários pequenos acontecimentos, dentre os quais já estava confirmada a presença da neve... Uhhhh... a história mudou de figura... a tabaroa aqui tava doida pra conhecer a neve. Nem precisou voltar a insistir no tema. Topei.

Pois bem... fui de carona com uma mulherada que já me deu o termômetro da coisa... só rolava catalão! No fim de semana estivemos na casa algo em torno de 30 a 35 pessoas, dentre as quais no máximo 5 não falavam a língua. A verdade é que já entendo bastante, mas a dose foi tão intensa que me surpeendi um momento pensando em catalão!!! Aixó mateix! Uff...

Bom, pra não me alongar muito vamos logo aos fatos legais:

- Na sexta de noite já tive a oportunidade de ver um pouco da neve, passeando nos arredores do albergue. Já fiquei toda besta, tocando nela pra sentir a textura.

- No sábado de manhã me convidaram pra um “passeio” numa montanha. “1h e meia de subida”, me disseram. Pensei nas trilhas da Chapada Diamantina e achei que dava pra encarar... Pois bem... Meire e Mateus vão saber bem do que estou falando: me senti exatamente como na ocasião em que nos levaram pra uma escalada no Pão-de-Açúcar. Ou seja... se soubesse o que me esperava provavelmente não tinha ido. O destino era o Pico da Galinha Pelada, com cerca de 2350m de altura. Velho!! Subir não era o problema... o que a anta aqui não tinha se dado conta era que ia subir na neve...e em várias consistências diferentes...aquela que afunda do pé até o joelho, aquela que desliza, aquela que você tem sair chutando pra fincar a ponta dos pés.... ao nosso redor passavam vários grupos super equipados com esquis e tudo mais... e nós... só na botina. Eu era deliberadamente a lesma do trio. Ia bem atrás e caindo o tempo todo. Até que me arranjaram uns pedaços de pau pra ver se eu me agüentava de pé... Me senti meio Guiodai-dai-daaaai!


A paisagem era essa feinha aí... mas o cansaço era tanto...que agora pelas fotos tô aproveitando mais...kkkk. Tinha horas que eu olhava pra baixo e via um despenhadeiro de neve... pra cima era um paredão... E agora José? Bola pra frente... tirei força foi da juba mesmo, que nem Sansão. Enquanto subia os trechos mais inclinados só ficava pensando... meu Deus...como vou descer isso??? Pois essa foi a melhor parte! Praticamos o que chamamos de “culing”, ou seja, foi à base do sky-bunda mesmo e de mais uma dúzia de quedas divertidas. Na volta, a bunda e os pés molhados e congelados foram uma diliça... imagine!

- Quando voltamos ao albergue estava quase tudo pronto pra minha primeira Calçotada!! Os calçots são um tipo especial de hortaliças que só se encontram na Catalunya. Essa foi a versão de brincadeira que um catalão me orientou pra explicar o que é quando me perguntassem... Mas a verdade é que os calçots são uma versão subdesenvolvida da cebola misturada com cebolinha... Bem... seja lá o que for, esse negócio, assado na brasa e melado numa salsa chamada romesco...uhhhh... é viciante. E reza a lenda que o negócio é comer se sujando todo... bem ao estilo lambuzento do catalão. Nessa época do ano pipocam calçotadas por toda Catalunya...é que nem caruru no mês de setembro...kkkk.


Obs.: Por falar em lambuzento... acho que da sexta ao domingo só eu e no máximo mais 3 pessoas tomamos banho.

- Ao acabar de comer a calçotada, uma surpresa nos esperava lá fora... caía neve!! Fininha, mas caía... a tabaroa fez a festa!

- À noite, numa tenda montada do lado de fora, música catalana de taberna, da melhor qualidade. Foi divertido. Olha aí um trechinho:


- Mais tarde foi a vez de Vívian com a bossa nova, mas não tem registro pq eu tava no chocalho e no backing vocal...kkkk. Ahh...cabe ressaltar que lá fora fazia uma lua cheia “que te cagas”.

- No dia seguinte me custou um pouco sair da cama... o corpo não respondia depois da escalada do dia anterior. Como íamos embora pela tarde, fizemos um passeio curto no povoado de Gósol, voltamos pra almoçar, sentimos que estava ainda mais frio e então... mais neve caiuuu!!! Só que dessa vez... não era fininha não! Era nevascaaaaaa... Em alguns minutos toda a paisagem embraqueceu. Veja o antes e o depois...
 


E olha a tabaroa aí como ficou:


Resultado: toca o povo a correr pros carros pra se mandar, porque se a neve piorasse ficava difícil sair de lá... Quando entramos no carro da nossa carona... Suprise! Não havia bateria! Depois de várias tentativas frustradas, empurradas de carro em meio à nevasca e outras bagaceiras mais, resolvemos voltar pro albergue e esperar pelo resgate da seguradora no dia seguinte. Aaahhhh... que chato!

Na segunda, caminhamos até povoado e ficamos de “semi-hóspedes” num restaurante por algumas horas até sermos finalmente resgatadas. As meninas eram muito bem humoradas e, embora estivessem no quarto dia sem tomar banho, eram boas companhias e nem cheiravam mal.

Ui... Depois da overdose cultural catalana, bom mesmo foi chegar em casa e ouvir Arnaldo Antunes. Tarragona já nem parecia tão fria. E meu desejo de conhecer a neve já estava mais que saciado. Aliás, até agora tenho neve até no... juízo.