terça-feira, 9 de junho de 2009

Trem das 14 horas/ Sentido Tarragona

Ao chegar na Estazione Centrale de Milano ela sentiu que a angústia que há dias a acompanhava ainda se fazia presente. Entrou na carrozza de número 6, ocupou o posti 74 corridoio. Sempre preferiu viajar na janela, mas diante da novidade de viajar em terras italianas, o corredor estava mais que suficiente. Só com o trem em movimento se deu conta de que chegaria a Veneza de costas. Não lhe agradava nada viajar nesta posição, sentia uma espécie de enjoo psicológico. A sensação de andar para trás lhe dava a impressão de que, junto com o trem, ia toda a sua vida. Enquanto a companheira portuguesa olhava o distante horizonte à sua frente, um futuro colorido e promisor, a ela restava fitar, com a habitual melancolia, tudo o que o trem já havia deixado para trás e que, aos poucos, ia se perdendo no horizonte daquela manhã cinzenta de sexta-feira. Por que era sempre assim? Por que ela sempre fazia com que fosse assim? Nao lhe faltavam por quês e, no fundo, sabia que podia responder a todos eles. Aprender a manejá-los era então o seu desafio.

No horizonte cada casebre de pedra que desaparecia lhe recordava uma história, uma pessoa, uma sensação. Não tardou a perceber que a tudo poderia dar um sentido.

Outro companheiro de viagem, o mexicano, lhe entrega o ipod e apresenta uma canção sobre um homem perfeito-saudável-bonito-respeitado-bem-sucedido-e-tudo-mais:
“He´s a well respected man about town/ doing the best things so conservatively…”
Se divertiu com a música e logo pensou o quão aborrida seria a sua vida se fosse assim tão linear. Por outro lado sua constante inconstância já começava a causar um certo cansaço.

Melancolicamente seguiam ficando para trás as histórias, pessoas e sensações. Até que, com uma leve inclinação de tronco e um giro de cabeça, por uma simples questão de acomodação, pôde contemplar o horizonte por um ângulo diferente. Estava agora de frente para o presente e ali ficou o tempo suficiente para começar a dar sentido às coisas. Percebeu que o presente mais próximo, que ficava na parte mais baixa, passava mais rápido, tanto que quase só o via como um vulto, um rastro. No ponto mediano do horizonte estava o presente em velocidade apreensível, confortável. Mas era no topo, no extremo mais distante do horizonte presente, que seguia ali, leve e constante, a sua angústia.

Nas poltronas à sua frente, os companheiros de viagem se divertiam em tentar interromper seu estado contemplativo:

“– La actriz que lleva dentro le usa a cada día.”
“– Sabe que puede actuar como quiera.”
“– Quizás ella sea un él por dentro. El dia que salga ya lo veremos.”
“– Creo que el imagen más sincera que he visto de él/ella fue hoy por la mañana, cuando se despiertó. Solo cuando se depierta es verdadera.”

Diziam tonterías, como estiveram os três fazendo durante toda o dia anterior, o que tornava a viagem cada vez mais divertida. Mas naquele momento, em que tentava por sentido em tudo o que seus sentidos percebiam, as bromas lhe caíram como mais informação a ser codificada.

Numa nova olhada pro horizonte se deu contado óbvio: às suas costas estava o futuro. Com uma leve inclinação de cabeça (sim, já conhecia o artifício) podia contemplar a paisagem futura mais próxima, segundos antes de se tornar presente. Mais que isso nao conseguia. Mais que isso nao se pode. Nem ela, nem a portuguesa, tampouco o mexicano. Assim é a vida.

4 comentários:

  1. nem uma fotinha do futuro que vai, do passado que vem...?

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  2. gostei muito de sua narraçoa...
    um toque de garcia marquez...

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  3. gostei de ver...olha os contos surgindo!!!
    quero ver o livro...já que falaram de garcia marquez...podia ser: lembranças de minhas putas viagens hehehe ou cronicas de uma viagem anunciada...
    brincadeiras a parte...gosto de ver e ler você carlinha.
    beijos

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  4. que massa! velho...vc escreve muito bem! fiquei toda entretida na "historinha" querendo chegar ao final...e adorei o final...
    Realmente, assim é a vida!

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