domingo, 5 de dezembro de 2010

"Epajei, madre mía!"

(Escrito em 04 de dezembro de 2010)
E aí, meu rei, já comeu seu caruruzinho de Santa Bárbara hoje? Pois eu já! Hahahahaha!
Saí de casa no meio do dia sem muitas pretensões, além de bater perna pelo centro e comprar coisinhas pra ajudar a agüentar o inverno que já chegou: adiantado e com tuuudo. Pois o tal vento frio soprou, soprou e acabou me levando pra uma festa de samba onde rezava a lenda iam vender um caruru... Fui lá com Paula, nova figurinha soteropolitana na área, só pra dar aquela velha “bizoiada” básica. Por aquelas horas o samba já tinha virado Olodum e foi ao som do “Eu sou negão” que conheci Sílvia, a quituteira do dia, que, além de ser a responsável pelo caruru completo, comemorava aí seu aniversário da maneira como deve fazer toda boa baiana filha de Iansã. Menina, o santo bateu e caí pra dentro do caruru de Sílvia com vontade! Enquanto me lambuzava ia me dando conta da saudade que eu tava daquilo e nem sabia. Seguramente não estava tão bom quanto o caruru da minha mãe, mas pro contexto... uhh... era mais do que perfeito. Eu e Paula, com aqueles dois pratos de caruru, imprensadas contra um pedacinho de balcão, me lembrou da típica situação em dias de São Cosme e Damião ou Santa Bárbara na Bahia: você é convidada pro caruru da irmã da amiga de um amigo, chega na casa cheia de gente desconhecida, sendo que metade já tá espalhada pelo corredor com seus pratinhos entre as pernas. A dona da casa te recebe com aquele abraço de amiga de infância, te leva direto pra cozinha e capricha no PF. Uma colher de arroz, outra de feijão fradinho, pouquinho de farofa de azeite, aquela boa porção de caruru, outra de vatapá... pode caprichar no vatapá, minha tia... tome-lhe outra colher. E o xinxim de galinha? Deixei de comer carne, minha tia... que fuleragem... caruru sem xinxim, onde já se viu? Mas tá valendo. Senta lá no corredor, minha filha, que tem um cantinho sobrando...
Engraçado o dar-se conta do quanto uma tradição marca a gente. Me recordei que essas cenas “carururescas” estiveram presentes em todas as fases da minha vida. E me dá a sensação de que já fazem tanto parte da minha bagagem cultural que, por mais que eu possa passar anos sem presenciá-las, elas continuarão sendo familiares, quase corriqueiras.
Enquanto rola a digestão fico aqui pensando na ironia dessa deliciosa surpresa de hoje. Pra explicar a ironia tenho que contar uma historinha.
No fim de semana passado aconteceram as eleições do Parlamento da Catalunya e o tema que deu a tônica da campanha foi a imigração e todos os assuntos correlatos. O grande responsável pela sua introdução e rumos dentro no contexto eleitoreiro foi o mais jovem partido catalão, chamado Plataforma per Catalunya. Com apenas alguns meses de criação, este pequeno monstro, liderado por um tal Josep Anglada, já entrou pra história por seu discurso escancaradamente xenófobo e capacidade de concentrar milhares de militantes e simpatizantes neonazi. O que mais assustou foi que, não apenas eles conseguiram fazer muito barulho na campanha, como assustadoramente tiveram uma votação incrivelmente expressiva (cerca de 75 mil votos!!!!). Por sorte não foram eleitos, mas a violência do seu crescimento no cenário local chamou a atenção pra um fato que não pode mais ser ocultado na sociedade catalã: a intolerância à diversidade cultural escondida por trás do discurso do nacionalismo, do independentismo catalão.
Afeeee...mas o que é que tudo isso tem a ver com o caruru, minha senhora? É verdade, fui longe. Mas é que como o assunto anda tão em debate no momento, tem-se discutido muito sobre a discriminação étnica e cultural direcionada aos imigrantes, principalmente os marroquinos e paquistaneses. As dificuldades de inserção social destes coletivos não são poucas e, ultimamente, até suas práticas culturais e religiosas vêm sendo fortemente recriminadas, a exemplo de várias manifestações por diversas cidades catalãs contrárias a construção de mesquitas em seu território.
Com isso quero também dizer que, apesar de todas as dificuldades que podemos encontrar por não estarmos em casa, nós brasileiros temos sorte (será essa palavra?) de sermos bem recebidos por aqui. Podem protestar os que acham que não são bem tratados, mas ninguém pode negar que o povo catalão gosta, sim, dos brasileiros e não cria muita resistência em incorporar alguns elementos da nossa cultura no seu dia-a-dia. Qual o bar aqui que não serve uma “caipiriña”? Qual a festa major que em alguma esquina não se ouve um batuque de escola de samba? Quantas centenas de professores e milhares de alunos de capoeira devem ter essa Barcelona? Com qual outra cultura vemos tanta receptividade? Deve haver mais, mas minha ignorância me limita vê-las.
Obviamente essa abertura não se traduz em direitos e facilidades no campo profissional, mas isso é outra história, que já toca mais fundo, ou melhor, no fundo do bolso.
Pois sim... e o caruru, minha filha? Tá aqui sendo digerido e eu sigo dando voltas... Velho, no dia de Santa Bárbara eu comi um caruru em Barcelona!! Sabe o que isso me remete? Que a cultura atravessa oceanos e segue com a gente onde quer que se vá. Não é novidade, foi assim com a colonização do Brasil, da América Latina. O africano não deixou de se sentir africano ao chegar naquelas terras, nem o europeu deixou de se sentir europeu. De lá pra cá muitas águas rolaram, o povo se misturou com os que já estavam (os poucos que sobraram) e as novas gerações foram testemunhas de novos contextos culturais, reunidos sob o rótulo de cultura brasileira. Atualizando pra conjuntura em questão, o que cada vez mais enxergo é o medo que reside por trás do blábláblá nacionalista de que a tal cultura catalã siga o rumo natural das coisas, de passar por transformações, incorporar novos elementos (inclusive de culturas desprezadas), mas ainda assim seguir sendo catalã. Sei também dos antecedentes históricos e por isso respeito o nacionalismo, mas penso que mais importante que olhar pra trás é procurar se posicionar bem pra seguir em frente.
Cada vez acredito menos no tal discurso da monstruosa homogeneização cultural que a globalização vai criar. Ainda que durante décadas Sílvia siga servindo caruru no dia de Santa Bárbara, com o maior êxito de público, nunca um catalão vai poder sentir o seu significado. Nem nós baianos podemos sentir a origem de tudo o que a África nos aportou. O que, sim, pode acontecer (e aconteceu conosco) são releituras, adaptações, resignificações. Mas as bases sobre as quais se esses “plug-ins” se instalam são muitas, são tão diversas, que não consigo ver como pode virar tudo uma coisa só. (Mais uma vez limitada pela minha ignorância)
A xenofobia é burra, dentre muitos outros motivos, porque pensa que pode parar o processo natural das coisas. É burra porque é conservadora e acredita que é através da violência que vai conseguir se defender do seu maior medo: o novo.
Agora, realmente... a pessoa sair do caruru, que tava tão bom, e chegar na xenofobia... putz, muita viagem. Desculpa aí se falei muita besteira. Boto a culpa no dendê fermentando aqui no estômago. Quer saber? O melhor que faço é ir dormir, que agora a digestão já vai bem adiantada. Boa noite procês.

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